Com o fim da ditadura militar na segunda metade dos anos oitenta, houve uma flexibilização da temática gay em novela, pelo menos não havia mais, a maçante presença da censura nessas obras culturais. Foi então que em 1985, a Rede Globo lançou no horário das sete, a novela que serviu despretensiosamente de termômetro para medir a reação do público

a personagens “diferentes”.
UM SONHO A MAIS, de Lauro César Muniz, tinha como protagonista
Volpone, interpretado por Ney Latorraca, um mestre dos disfarces que quando aparecia como a transformista
Anabela Volpone (foto) e se unia as companheiras
Florisbela Volpone e Olga del Volgo, interpretadas por Marco Nanini e Patrício Bisso, proporcionava cenas hilárias que marcaram a história da telenovela. Mas apesar disso, por pressão da parte moralista dos telespectadores, Lauro foi obrigado a cortá-las da novela. A obra serviu de inspiração à participação de Nanini e Latorraca na peça “O mistério de Irma Vap”, um ano depois, e foi um grande sucesso que ficou anos em cartaz no teatro, e a pouco tempo ganhou versão no cinema. A resposta da Globo sobre a repercussão da novela de Lauro foi rápida. A emissora viu que explorar a comicidade gay daria resultados, e se o problem

a era mostrar homens vestidos de mulher em pleno horário das sete, mostraria homens vestidos de homem, mas com aquela afetação engraçada da turma de Volpone. A substituta de Um sonho a mais, trazia dois estilistas rivais afetados e hilários, eram
Jacques Leclair e Valentino, (foto) interpretados por Reginaldo Faria e Luiz Gustavo na novela
TI TI TI, de Cassiano Gabus Mendes. Foi

um sucesso, mas consolidou o rótulo aceitável pelo público a respeito dos personagens
homossexuais. A partir dali, gay em novela, ou era cômico ou polemico. Em 1986, Lauro César Muniz voltou ao tema, agora no horário das oito. Na novela
RODA FOGO, o ator Cécil Thirée viveu um dos papéis mais brilhantes de sua carreira. Tratava-se do vilão
Mário Liberato (foto), homossexual assumido e estereotipado que flertava com o mordomo,
Jacinto, vivido por Cláudio Curi.
Sem dúvida a abordagem mais importante da homossexualidade na telenovela brasileira foi em 1998, não pe

la sua apresentação, mas por sua repercussão. Em 1998, Silvio de Abreu (foto) mostrou ao Brasil o casal de lésbicas bem sucedidas
Rafaela Katz e Leila Moreno, personagens de Christiane Torloni e Sílvia Pfeifer. A novela era
TORRE DE BABEL que devido aos baixos índices de audiência atribuídos principalmente ao casal, sofreu uma reformulação geral no cap

ítulo 47, com a explosão do shopping
“Tropical Tower”. A explosão já estava prevista, mas o rumo dos personagens seria diferente. No que diz respeito ao casal de lésbicas, na sinopse original só Rafaela morreria e Leila tentaria reconstruir a sua vida ao lado de
Marta, personagem de Glória Meneses, que vivia em crise no seu casamento. A direção da novela chegou a pensar em transformar Leila em heterossexual, mas segundo eles isso seria de extremo mau gosto sendo que Silvia conduzia o personagem com maestria. A solução para que a atriz não ficasse fora da novela foi criar uma irmã gêmea para Leila,
Leda que surgia do nada para reivindicar a herança da irmã. Torre de babel tinha tudo para dar certo, mesmo com seus temas polêmicos. Mas infelizmente, ficou marcada como uma vitória do p

reconceito sobre uma tentativa válida de se retratar a vida como ela realmente é.
Mesmo após a polêmica de Torre de Babel,
SUAVE VENENO, apresentou também, personagens homossexuais. Bem diferente do que Silvio de Abreu pretendia com a sua novela, Aguinaldo Silva, autor da novela explorou os personagens
Uálber e Edilberto, Diogo Vilela e Luis Carlos Tourinho(foto), até a sua última veia cômica. Na trama, Uálber era um paranormal que vivia as turras com a sua complicada família e ocultava de todos a sua vida pessoal, inclusive a sua notável homossexualidade. A trama de Aguinaldo também não ia bem das pernas e quando a direção da Rede Globo pediu à ele uma reviravolta na trama, curiosamente os dois personagens gays foram poupados porque, em pesquisa, foram apontados como líderes de popularidade da novela. No último capítulo Uálber ganhou até um namorado, sem beijos, nem romantismo, apenas com insinuações.
Em
AS FILHAS DA MÃE, 2001, Silvio de Abreu voltou a incomodar os telespectadores

mais conservadores. O ministério público chegou, através do promotor Siro Darlan, conhecido por vetar crianças no mesmo ano em
Laços de Família, a tentar vetar na trama a apresentação da transexual
Ramona, interpretada por Cláudia Raia. Na trama, os filhos de Lulu de Luxemburgo, vivida por Fernanda Montenegro brigavam pela sua parte do resort
“Jardim do Éden”. Ramón, que tinha sumido no mundo, reaparece como mulher após uma cirurgia de mudança de sexo. Apesar dos problemas de audiência da novela, Ramona conquistou o público, tanto que os picos da novela se davam justamente quando ela lutava para que seu grande amor, Leonardo, vivido por Alexandre Borges, aceitasse sua transexualidade e a assumisse publicamente.
Após anos vivendo à sombra das tramas principais das novelas, os personagens homossexuais começaram a t

er seu espaço reservado, principalmente no horário das oito. Em
MULHERES APAIXONADAS, 2002, a amizade das jovens
Clara e Rafaela, personagens de Aline Morais e Paula Picarelli, dividiram até boa parte da trama as opiniões da audiência. Muitos acreditavam que só havia amizade entre as duas, mais ao longo da história foi se desenhando uma relação que em determinado momento se caracterizou como um relacionamento marcado por Manoel Carlos com muito carinho. Criou-se uma expectativa sobre o beijo gay entre as duas, não só por uma questão política e democrática, mas por se tratarem de duas belas mulheres. No último capítulo, o beijo entre as duas decepcionou a muitos. Traduziu-se em um beijo no queixo enquanto interpretavam a cena final de Romeu e Julieta. (foto)
Enquanto Clara e Rafaela insinuavam uma relação no horário das oito da Rede Globo, as sete um casal de senhores simpáticos agradavam o público com seu jeito de ser. Em
DESEJOS DE MULHER,
Ariel e Tadeu, vividos por José Wilker e

Otávio Muller, não tiveram nenhuma rejeição do público, muito pelo contrário, eram muito queridos pelos telespectadores. Mesmo assim, Euclydes Marinho, autor da novela recebeu uma ordem direta da diretoria da emissora para “amenizar” a exploração do casal. Sem nenhum motivo aparente, Ariel e Tadeu (foto), deixaram de ser casados, de uma hora para outra passaram a ser dois amigos gays, cômicos diga-se se passagem, morando sobre o mesmo teto, sem vínculos e nem alianças. O ator José Wilker em entrevista à Folha de São Paulo chegou a dar a seguinte declaração:
‘‘Estou evitando assistir à novela, pois sei que muitas das cenas foram mutiladas. Não posso impedir que os autores mudem o texto, mas como ator, posso manter a composição inicial que fiz para o personagem que é um gay sem estereótipo. Quanto ao argumento de que no horário das sete tem muito adolescente e isso pode influenciar na formação da personalidade deles, provo o contrário através das minhas filhas, de 22 e 17 anos. Elas encararam esse personagem com mais naturalidade até do que eu.’’. O final dos personagens Ariel e Tadeu foi filmado me plena Parada do Orgulho Gay de 2002, e Wilker e Muller foram ovacionados pelo público de um milhão de pessoas
A partir de 2003, toda novela das oito da Rede Globo, passou a ter o seu personagem homossexual. A emissora percebeu que só explorar seu filão cômico não bastava para retratar uma “minoria”que contava com uma força cada vez mais ascendente na população. Percebeu-se que as pessoas já estavam mudando seus conceitos sobre os homossexuais, prova disso é o numero, cada vez mais ascendente da Parada Gay de São Paulo e a repercussão cada vez mais positiva nas telenovelas de personagens “diferentes”. Em
SENHORA DO DESTINO, 2003, o casal de lésbicas
Eleonora e Jennifer, vividas por Mylla Christie e Bárbara Borges, discutiam sua homossexualidade e a possibilidade de adotarem uma criança. Em 2005, Glória Perez voltou a explorar o tema gay em
AMÉRICA, após a desastrosa aparição de Sarita Vitti, apresentou para o Brasil o jovem
Junior, personagem de Bruno Gagliasso que escondia da mãe, a fazendeira casca dura
Dona
Neuta, interpretada por Eliane Giardini, que desejava ser estilista, enquanto ela sonhava que ele assumisse seu lugar na fazenda. No decorrer da trama, Junior vivia em conflito com a sua condição chegando até a namorar meninas, mas quando conhece o peão
Zeca, personagem de Erom Cordeiro,(foto) se apaixona perdidamente e se surpreende quando percebe que é correspondido. No final da novela, Glória escreveu, o diretor Jayme Monjardim gravou e Bruno e Erom interpretaram o que seria o primeiro beijo gay da telenovela brasileira, porém lamentavelmente a cena foi cortada pela emissora. Em 2006, foi a vez de Gilberto Braga voltar a falar sobre o assunto, mas de uma maneira mais tímida.
PARAÍ
SO TROPICAL trazia um casal gay comum,
Rodrigo e Tiago, vividos por Carlos Casagrande e Sérgio Abreu, tinham uma relação estável, mas entravam em crise quando Tiago começava a se sentir inferior profissionalmente ao marido, enquanto Rodrigo era secretário particular do empresário Antenor Cavalcanti, personagem de Tony Ramos, Tiago era apenas um recepcionista de um de seus hotéis. Desta vez, Gilberto não polemizou, apenas mostrou um casal como outro qualquer.
Em 2007, a Rede Record cogitou a possibilidade de se antecipar a Globo e mostrar primeiro o beijo gay em telenovela. Na novela
CAMINHOS DO CORAÇÃO, Cláudio Heinrich vive
Daniel, um gay reprimido que tenta não pensar em sua condição e permanecer preso dentro de seu armário. Após alguns meses de apresentação, a emissora paulistana voltou atrás na decisão e deixou claro que não haveria beijo gay na novela, pois tem a intenção de reprisá-la no horário da tarde futuramente.
Já a Globo, se apóia

na esperança de um beijo gay para garantir a audiência de suas novelas e protagonizou um dos momentos mais lamentáveis da sua história ao divulgar o beijo gay entre os personagens Bernardinho e Carlão (foto) da novela
DUAS CARAS. O beijo não aconteceu e ao contrário de América, não chegou sequer a ser gravado, mas a sua expectativa garantiu pico de audiência no último capítulo da novela, onde mais uma vez houve casamento, sem beijo. Atualmente a Globo volta a atacar com o velho clichê gay cômico em
A FAVORITA, onde Orlandinho (foto),

vivido por Iran Malfitano vive uma paixão platônica por Halley, personagem de Cauã Reymond, que por sua vez, se aproveita da fragilidade de Orlandinho para bancar o bacana com o seu dinheiro. Mas também cogita-se a possibilidade da dona de casa submissa, Catarina, personagem de Lília Cabral viver um romance com a chef de cozinha Stela, vivida por Paula Burlamaqui.
Possivelmente não será com A Favorita, que a Globo irá apresentar o primeiro beijo gay. É necessário refletir que, a abordagem sobre o homossexual na telenovela, vai muito além deste beijo, ele pode acontecer hoje a noite às nove da noite, mas não será isso que irá mudar alguma coisa, pois o beijo é beijo, seja entre homem, entre mulher, ou entre homem e mulher. É notável que a telenovela é o espelho do que é aceitável pela população, pois através dela o público escolhe o que vai querer ver.
O beijo gay é apenas um passo, pois há muito que se mostrar sobre o gay. O gay de novela hoje, não tem amigos, não tem vida social, dificilmente apresenta uma perspectiva de vida. É claro que os gays são engraçados, mas não é justo pintá-los como palhaços do circo eletrônico. O que a telenovela precisa retratar é a dificuldade que é para o gay se assumir assim, não para os outros, mas para si mesmo. Retratar os preconceitos que se sofre desde cedo, nas escolas, na rua, nas piadinhas infames. Mostrar sim o quanto são engraçados, mas também o quanto são talentosos, e o quanto admiram o belo a arte. Enfatizar o apoio que é dado por suas famílias, ou a falta dele. Enfim, há um longo caminho para que o homossexual seja retratado com dignidade na televisão brasileira, que vai muito além de um simples beijo.